Oldsmobile V8 Diesel - A esperança, a cruz e a sina
Um motor tão problemático que manchou a imagem do diesel nos EUA
É possível um exemplar de uma raça ser o responsável pela derrocada de seus semelhantes? Sim, é possível. Assim que cheguei aos EUA em janeiro, me saltou aos olhos logo ao sair de Washington D.C. o preço mais alto do Diesel frente à gasolina. Não obstante, ver um veículo com motor funcionando no ciclo de Rudolf Diesel era bem raro em relação a Europa, onde a proporção é bem próxima dos 50/50 e pequenos motores turbodiesel são a tônica do momento com seu alto rendimento, torque impressionante e baixo consumo.
Nos EUA, entretanto, era exclusividade de veículos bem pesados, porque até mesmo as caminhonetes enormes quase sempre tinham seus V8 movidos a gasolina a roncar. Veículos pequenos então eram raridade absoluta, e só não foram extintos graças a alguns raros Volkswagen e Mercedes Turbodiesel. Se, em contraste com esse quadro, a aceitação do americano com esse tipo de motor vem gradativamente aumentando, não pude me esquecer da até então lendária história do Jimmy Hoffa motor LF9 V8 da Oldsmobile.
Sim: devido a esse malfadado propulsor que o mercado americano rejeitou sumariamente, durante mais de duas décadas, os motores Diesel. Acompanhe a ascensão e a derrocada desse sonho que afundou a General Motors em uma das maiores crises de imagem e confiabilidade em uma longa história. Mas longa mesmo! Bote o lixo pra fora, prenda seu cachorro e mande sua mulher ficar no mute. Coloque seu LP do Billy Joel e fique atento ao que virá a seguir:
A esperança:
Vamos ao início dos anos 1970. A General Motors obtinha imenso lucro com a venda de grandes carros no mercado americano e também para exportação, com bons preços frente a seus concorrentes. Suas cinco marcas eram a Chevrolet, Oldsmobile, Pontiac, Buick e Cadillac, e faziam excelente caixa com a venda de suas banheiras com desempenho condizente, grande rol de opcionais e carrocerias, estilo adequado e confiabilidade reconhecida. Sim, a GM começava naquele momento a projetar modelos menores e compactos. Mas eram os grandes navios encouraçados sobre rodas tocando Frank Sinatra que enchiam os cofres em Detroit.
Entretanto, em 1973, veio a primeira crise internacional do petróleo, trazendo consigo um enorme problema. Os grandes carros que mantinham a GM com boa saúde financeira consumiam um barril de petroleiro inteiro a cada toque no acelerador. E, nesse período, a gasolina encareceu em um perfil exponencial. O resultado não podia ser outro: queda drástica nas vendas dos grandes carros de todas as marcas.
Era a morte da galinha dos ovos de ouro? Não necessariamente. Uma grande parcela dos americanos não gostava de carros compactos e não pagariam por eles. E os administradores da GM sabiam disso.
O resultado da crise no mercado do Tio Sam foi imediato. Foi instaurado um órgão para regulamentação do consumo de combustível nos automóveis vendidos em solo americano, o famigerado CAFE (Corporate Average Fuel Economy) em 1975. As normas do CAFE, juntamente com as então novatas normas de controle de emissão de poluentes em vigência nos EUA, imediatamente levaram a uma redução de potência dos motores e do tamanho das carrocerias, já que não havia muita tecnologia ou automação que pudesse ajudar na melhora da eficácia dos propulsores.
Assim, as banheiras americanas começaram a se arrastar pelas ruas e estradas com o mesmo vigor do Ronaldo em fim de carreira, a despeito dos ainda enormes motores V8 completamente estrangulados e do consumo menor satisfazer o ímpeto do consumidor. Ainda assim, para o fim da década em questão, as novas gerações dos modelos de sucesso chegaram a perder mais de 100 quilos, partindo até mesmo para a redução de medidas das voluptuosas carrocerias. Todos esses esforços, entretanto, poderiam não ser suficientes para a imposição que o CAFE faria para 1978. A nova regulamentação estipulava que os veículos de passageiros deveriam apresentar uma média de consumo no seu ciclo padrão de, pelo menos, 18 milhas por galão (MPG), ou 7,7km/l.
A esperança para o fim dos dias turbulentos no setor dos tradicionais sedans e derivados da GM respondia por um só nome: Diesel. Dessa forma, o público poderia manter vivo o seu caso de amor com os grandes carros da corporação sem ter que deixar o fígado ou a córnea como pagamento na bomba de combustível. Além disso, os motores diesel não estavam sujeitos às mesmas exigências de emissões como os motores a gasolina, e Mercedes-Benz e Peugeot começavam a obter certo êxito com a venda de carros de passeio com esse tipo de propulsor na terra do Obama.
A esperança deveria se tornar realidade, portanto. O ano era 1977 e a GM não pretendia gastar rios de dinheiro nesse projeto. A escolhida para capitanear o projeto foi a Oldsmobile. E por que ela? Simples: ao passo que os Pontiac ofereciam diversão a baixo custo, a Chevrolet era a marca tradicional, a Buick ofertava altas doses de potência e requinte e a Cadillac estava em um nível monárquico e supremo de luxo, exagero e status, a Oldsmobile sempre foi a plataforma de testes e lançamentos de inovações do grupo GM. Assim, eles foram os pioneiros com a transmissão Hydramatic, com tração dianteira nos EUA e com motor V8, motores a gasolina turbinados, tapa-sexo, airbag e muitos outros.
Interessante notar que tudo isso ocorreu num momento em que a GM estava consolidando a oferta de motores de um de seus fabricante em vários produtos de outras marcas do grupo. Isso significa que passava a não ser tão incomum ter seu Oldsmobile equipado com um motor Chevrolet ou vice-versa. Além disso, a Olds era a terceira em vendas nos EUA naquele momento, ficando atrás somente de Chevrolet e Ford.
A Oldsmobile gozava de excelente reputação com seu motor Rocket V8, de 350 polegadas cúbicas e considerado como um dos motores mais confiáveis na época. Cabe ressaltar que ele não tinha nada em comum com o famoso Small Block Chevy, também de 350pol³. O novo motor diesel, um V8 como mandava a preferência americana, era oficialmente chamado de Oldsmobile 350 Diesel V8 (internamente LF9) e compartilhava alguns de seus componentes com o Rocket V8 a gasolina.
Ao contrário do mito popular, no entanto, o motor não foi simplesmente convertido do Rocket para o LF9. Era um novo bloco, reforçado e construído com uma liga de ferro fundido mais resistente, além de novos cabeçotes, juntamente com virabrequim, bielas, mancais e pinos sobredimensionados. Entretanto, mantinha o mesmo diâmetro (4,057"/103,5mm) e curso (3,385"/86,0 mm) do motor de ciclo Otto. Com seus 5.737cm³ (5,7l), taxa de compressão de 22,5:1, injeção indireta de combustível e sem sobrealimentação, o propulsor entregava inicialmente 125cv a 3.600rpm, além do torque de 30kgfm a 1.800rpm para carros de passeio. Para aplicações utilitárias, esses números passavam a 125cv/31kgfm.
Inicialmente, quando lançado no ano-modelo 1978, parecia pura genialidade. Conforto e luxo em doses colossais e consumo de carro econômico. Seu gigantesco Olds 98, aquele com os assentos de couro vermelho e um milhão de acionamentos elétricos, agora rendia inigualáveis 30 MPG (12,8 km/l!). E quando a revolução iraniana causou um segundo choque do petróleo no início de 1979, foi lindo e maravilhoso. Juntamente da introdução dos X-Cars, de tração dianteira e mais econômicos (não confundir com os X-Men), a GM estava quilômetros a frente da concorrência e aparentemente era gerida por uma cabala psíquica de super gênios.
Para colocar esse sucesso inicial em perspectiva: em 1978, a Olds novamente fabricou por volta de um milhão de carros. Desse montante, 33.841 foram Diesel. E você tinha que pagar 850 dólares extras para equipar seu sedã ou coupé 88 (740 dólares no 98) com um V8 diesel. Isso quando um Oldsmobile 88 V8 básico custava exatos 5.659 dólares. Ou seja, representava 15% do valor. E para melhorar ainda mais, em 1980 o motor diesel foi ainda mais popular e estava disponível no Cutlass (best-seller do fabricante naquele momento) e no Toronado. Nesse ano, a Olds fez 126.885 carros movidos a diesel , dentro de um total de 910.306 veículos produzido. E todos aqueles com motor Diesel pagaram o preço do opcional, rendendo um lucro considerável.
A GM rapidamente tomou conhecimento da popularidade do novo motor e, na onda nova crise energética de 1979, começou a oferecer o Diesel Olds como opção em alguns modelos Pontiac, Chevrolet e Cadillac, como parte da oferta global de propulsores já relatada.
E então começaram a surgir os problemas...
A cruz:
O que aconteceu certo tempo após a introdução do Olds Diesel no entanto, arruinou de forma quase irreparável a reputação de motores diesel na América do Norte, bem como a da GM e Oldsmobile. Mas para começar a explicar o fracasso, vamos para uma rápida aula de Termodinâmica na Teleaula de hoje.
Os motores a diesel operam usando um esquema de ignição por compressão. A lei dos gases ideais nos diz que, quando o um volume de um gás é comprimido, sua temperatura sobe. No caso de um motor a diesel, esse volume é comprimido até que o combustível se inflame dentro câmara de combustão. Isto nos leva a taxas de compressão muito mais elevadas e a pressões na câmara de combustão maiores dos que as presentes num motor a gasolina.
Normalmente os motores a diesel têm mais parafusos prendendo o cabeçote, que ainda são mais resistentes para compensar a maior pressão interna do cilindro no ciclo Diesel. O V8 LF9, no entanto, manteve os mesmos 10 parafusos prendendo o cabeçote ao bloco que o Rocket V8 a gasolina utilizava. Isso ocorreu unicamente para que as ferramentas de construção desses motores fossem de uso comum tanto para motores a gasolina quanto para diesel.
Desta forma, o torque gerado pelos parafusos do cabeçote não era suficiente para lidar com as pressões mais elevadas que os motores diesel são submetidos; daí os parafusos de aperto originavam forças distribuídas de forma inadequada. Na prática, essa situação foi desastrosa. Os parafusos do cabeçote em quantidade insuficiente esticavam-se ou quebravam, levando a falhas na junta do cabeçote. Uma vez que esta junta fora violada, líquido de arrefecimento fatalmente vazava para dentro dos cilindros. Por fim, como as folgas em um motor a diesel são mínimas, invariavelmente ocorria um assombroso calço hidráulico que resultava em bielas e virabrequins completamente deformados. Coloque "deformado" nisso, ok?
Era um erro fatal, mas não era o único. Outra opção para redução de custos completamente idiota míope foi a omissão um separador de água no sistema de combustível. Nessa época, diesel contaminado por água era bastante comum nos EUA (ainda é comum por aqui!), e em motores dessa natureza é obrigatória a inclusão um dispositivo que remove a água do combustível. Isto é importante porque os sistemas de alimentação desse tipo de propulsor são altamente suscetíveis à formação de ferrugem por ação da água ou de outros elementos corrosivos. Sem o separador de água o aparecimento de corrosão era comum em bombas injetoras, linhas de combustível e injetores, levando a falhas graves no funcionamento da bomba injetora de diesel. E se a água entrasse no interior do cilindro, qual era o resultado? Sim, garoto: outro calço hidráulico.
Não obstante, proprietários jihadistas sem noção do perigo liam no manual do proprietário do motor Rocket que despejar álcool anidro no tanque de combustível resolveria o problema da água no combustível. O álcool anidro liga-se quimicamente com água, que por sua vez se une à gasolina novamente, tornando homogênea a mistura que passava através do motor de ciclo Otto sem maiores problemas. Mas no diesel Olds, o álcool anidro também corroía as vedações da bomba de combustível e flexíveis da linha de alimentação, além outros componentes delicados. O pior: o procedimento chegou a ser indicado por mecânicos da Rede Autorizada GM!
Ainda na oficina, os mecânicos não tinham conhecimento técnico para a reparação de motores diesel. Assim, eles simplesmente faziam intervenções no motor LF9 da mesma maneira que lidavam com o Rocket V8 - até mesmo porque as peças retiradas e o motor sob o capô lembravam em muita coisa o propulsor a gasolina. Assim, as chances de que os parafusos de cabeçote já danificados fossem usados novamente era altíssima, resultando em falhas catastróficas novamente. Que iriam se repetir cada vez mais em menores intervalos.
Outros problemas também foram notados: a correia de sincronia da bomba injetora era frágil, reduzida lubrificação nos cabeçotes devido às galerias de lubrificação subdimensionadas e falta de alívio de tensões na fundições dos blocos, que por vezes saiam empenados de fábrica sem a verificação devida da produção da Oldsmobile.
E como era o desempenho dessas crianças? Em uma só palavra: bizarro. Primeiro exemplo a ser tomado é o do Cadillac Eldorado Diesel 1979. 0-60 MPH? 16,9 segundos. Quarto-de-milha (402 metros)? 20,7 segundos com a animação do João Gilberto numa quarta-feira de cinzas. Quer uma comparação direta? A Chevrolet Caprice Wagon 1980 com seu V8 a gasolina fez a prova dos 0-60 MPH em 13,9 segundos, percorrendo o quarto-de-milha em 20,0 segundos. Sua contraparte a diesel gastou quase seis segundos a mais para chegar até a 60 MPH (!), perfazendo em 19,6 segundos, e atingindo os 402 metros em 21,7 segundos. Isso era simplesmente vergonhoso, mesmo para os padrões anêmicos dos motores amarrados da época.
Entre 1978 e 1980, os motores diesel Olds comercializados com um "D" assinalado no bloco produziam a potência indicada mais acima. De 1980 até 1985 e agora ostentando um "DX" gravado no propulsor indicando uma série de motores mais resistentes, o fraco motor rendia 105 cv de potência e 28kgfm de torque. Ou seja: pior do que antes. Como a popularidade começou a declinar fortemente ao passo que problemas continuaram a crescer, a GM tentou reavivar o interesse no diesel Olds introduzindo um motor menor e aperfeiçoado em 1982: um V6 4,3 litros com apenas 85cv de potência @ 3.600rpm e 23kgfm de torque @ 1.600rpm. No entanto, com o estrago já feito, a produção de motores diesel terminou em 1985. Nota: os V6 não eram problemáticos como os V8, mas foram afetados pela imagem negativa do irmão maior.
Agora vem a cereja no topo: o Olds Diesel não era nada refinado e gerava uma cacofonia de bateria e chocalho por onde passava. Sem contar o cheiro de trator Massey Ferguson que ficava pelo caminho. Então, enquanto você não estava dirigindo um carro alugado esperando a GM fazer um péssimo serviço no seu carro que em breve seria refeito, você dirigia um carro barulhento, fedorento e laboriosamente lento. Era isso que eles queriam? Eu acho que não...
Isso gerou um estrago que a GM não esperava, nem mesmo no pior pesadelo de seus gestores.
A sina:
O LF9 tornou-se, no meio automotivo americano, qualquer coisa que se assemelhe a Chernobyl em termos de catástrofe. Você compra um carro caro e paga a mais por um motor especial, que será reconstruído dentro de um ou dois anos após tirar o veículo do showroom, uma vez que o mesmo se deteriora até virar uma pilha inútil de ferro e aço. Isso não pega bem para nenhum fabricante, não é mesmo? Seja qual for a quantia que você economizou com combustível, você provavelmente perdeu mais em alugueis de guincho e aluguel de automóveis, além de tempo de trabalho perdido.
Pelo menos a GM assumiu sua burrada e pagou os reparos e substituições. Na verdade, os problemas eram tão numerosos que os concessionários GM tinham um código especificamente para reparos desses motores sob garantia: Eles eram tidos como Automatic Factory Acceptance (aceitação automática de fábrica), ou AFA. Mas a GM não poderia ajudar com o seu valor de revenda, que a cada dia se encontrava mais profundo do que o petróleo do pré-sal.
Em teoria, o Oldsmobile LF9 poderia e deveria ter sido um sucesso, mas acabou por ser enterrado por uma engenharia de má qualidade e uma total falta de conhecimento do pós-venda. No final da novela ainda foi julgada uma ação coletiva, em que a GM teria que pagar de volta para os clientes 80% do custo de um motor novo. Ironicamente, quando bem cuidado, o Olds diesel por vezes se mostrava confiável a ponto de aguentar uma jornada de muitos anos sem maiores problemas. Mas, em um âmbito geral, os motores eram tão ruins que os legisladores em vários estados foram estimulados a criar novas leis de proteção ao consumidor com base nesse caso. Sim, isso é verdade! O pior: por serem reforçados e terem as mesmas medidas do Rocket V8, os blocos, virabrequins, bielas e mancais do LF9 eram muito procurados por preparadores que queriam extrair mais potência do motor a gasolina sem riscos de quebras! Doce ironia.
O Olds Diesel não somente manchou a reputação da GM no mercado de grandes carros - um mercado dominado por eles - mas também recebeu outro golpe contundente quanto a sua reputação de engenharia bem feita e qualidade de produção. Os compradores simplesmente não podiam confiar a partir daquele momento que os carros da GM foram bem projetados e construídos. Por fim, talvez o fiasco Diesel causou mais danos a GM do que o problema do Chevrolet Corvair dos anos 1960
O Oldsmobile 350 Diesel V8 congelou fortemente as vendas de motores diesel para uma geração inteira de consumidores. Somente agora, 30 anos depois, que esses propulsores timidamente começam a reencontrar seu espaço no mercado de automóveis dos Estados Unidos, sempre em pequenas quantidades e normalmente de fabricantes alemães, embora a própria Chevrolet tenha lançado recentemente o Cruze 2.0 a diesel com algum êxito. O próximo a receber tal propulsor é o Malibu, provavelmente um V6 Turbodiesel.