A França, os automóveis e a melancia na cabeça
Com bons ou péssimos carros, os franceses sempre foram...diferentes!
A relação dos franceses com os automóveis nunca foi tão desanimadora quanto hoje. Ainda há um C4 Cactus com borracha por toda a carroceria ali, um Twingo com tração traseira aqui, mas a grande maioria é de carros como quaisquer outros e que poderiam ser fabricados por qualquer um. E isso é ruim, muito ruim. Piora quando você descobre as máquinas malucas que eles já fizeram…
Atenção: esse texto tem como temática a França. Então vale a pena considerar algumas coisas.
1 - Se você curte vinhos, queijos, Citroën DS, acha a torre Eiffel MA-RA-VI-LHO-SA, eventualmente depila alguma parte do corpo, tem comichões quando vê a nova coleção do Yves Saint-Laurent e adora conversar simultaneamente de brioches, baguetes, Le Corbusier, Le Mans, Dior e Brigitte Bardot: esse texto é para você
2 - Se você está lendo esse texto em um jornal de seis meses atrás sentado na travessa dianteira de um Opala com os dois pés descalços dentro do cofre com as unhas sujas de graxa, com um parafuso no canto da boca, pensando na Rita Cadillac, ouvido Rádio AM, limpando o ouvido com um tucho mecânico do 250-S: Esse texto não é para você. Mas acredite, leia. Se você não gostar, você vai odiar a saber tanto sobre franceses.
A história dos franceses com o automóvel é antiga, extensa e magnífica. Para que não façamos desse texto uma versão da Bíblia comentada por Galvão Bueno (haja coração!), darei meu ponto de partida nessa análise no Salão de Paris de 1955, mais precisamente no dia 05 de outubro. Mas, por favor, tenha em mente que antes desse dia:
- Existiam mais fabricantes franceses do que atualmente;
- Le Mans já existia com o mesmo traçado dos dias atuais;
- Tração dianteira, carros potentíssimos para a época e diversas evoluções da engenharia já eram utilizados e desenvolvidos por fabricantes franceses.
Naquele 05 de outubro de 1955, em uma Paris de outono, ocorria o Salão Internacional do Automóvel. Neste fora lançado um marco para a indústria automobilística, cujo legado permanece até hoje: o Citroën DS.
Suspensão independente auto-nivelante nas quatro rodas com controle hidropneumático, tração dianteira, longo entre-eixos com pequenos balanços, bitola traseira menor que a dianteira - em nome da aerodinâmica -, discos de freio no eixo dianteiro, transmissão semi-automática, direção com assistência hidráulica, construção em monobloco, motor montado em posição recuada e interior desenhado por Salvador Dali após usar LSD. Consegue imaginar o impacto disso naqueles dias?
O que se via naquela época era carroceria sobre chassi, tração traseira, feixe de molas, freios a tambor, eixo rígido e tudo que hoje é arcaico mas que era o padrão nos anos 1950. Visto de outro prisma, é como se o Classic da sua tia-avó fosse movido a plutônio, flutuasse, fosse feito inteiramente de fibra de carbono e ainda tivesse a capacidade de submergir.
Nem um AP com dois turbos é tão chocante assim, jovens. E chocar populares é algo que os franceses se dispunham a fazer.
Estava oficialmente decretada a rebeldia francesa na forma de fazer carros. Que diga o sucessor do DS, o CX: Era o DS com as formas retilíneas que viriam a povoar o mundo automotivo nos anos 1980, a despeito dos motores mais fracos que a concorrência. Aliás, bom momento para tocar em algo mais doloroso do que pagar IPVA: a França teve sim bons motores. Se não competiam com os grandes sedãs e coupés na segunda metade do século XX, é muito mais por falta de visão ou capacidade de produção de modelos grandes do que de know-how para tal. Mas tocaremos nesse assunto depois.
Voltando aos Citroën de topo e sua teórica baixa potência, eram dos melhores sedãs de luxo no MUNDO em termos de suavidade de rodagem. Tanto, que a Mercedes-Benz, referência tanto em luxo quanto em vanguarda construtiva, usou o sistema da Citroën após licenciamento da patente. Por mais firmes nas Autoban e serenos em condução tranquila que fossem os tanques da terra de Kroos, Müller e outros heróis nacionais, as MB ainda ficavam atrás dos Citroën em suavidade. No exato momento que isso ocorreu, dizem as fontes que Charles de Gaulle dançou a "Dança do Quadrado" em cima do túmulo de Hitler tamanha felicidade e revanche.
Mentira, Hitler nem túmulo para ser sambado tem...
Nos anos 1990 e 2006, os sucessores XM e C6 tinham lá usas excentricidades bacanas de desenho, além de estrearem novas tecnologias, como a suspensão Hydroactive totalmente monitorada por computadores, além de manterem o nível de distinção e conforto. Eram carros bacanas, sem dúvidas. Mas não brilharam tanto quanto seus antecessores.
Ainda na marca do "double chevron", o modelo médio dos anos 1970 era o GS. Teve a suspensão hidropneumática – ele podia até mesmo andar em três rodas! -, mas o mais curioso era o projeto de motores Wankel (rotativos, como o do Mazda RX7), que chegou a equipar alguns poucos exemplares e logo se mostrou um grande fracasso. Ao mesmo tempo, o cupê SM chegava às ruas trazendo consigo toda a excentricidade dos Citroën topo-de-linha juntamente com um motor V6 com fortes genes da Maserati, comprada pelo fabricante francês em 1968.
Outro que seguia firme e forte era o guarda-chuvas com rodas chamado 2CV e todas as suas derivações, como 3CV, Dyane, Mehári e dezenas de outros.
Diante da necessidade de substituir o GS para os anos 80, a Citroën tomou como base um protótipo Bertone originalmente desenvolvido para a Volvo em 1979, o Tundra. Nascia então o Citroën BX, que unia confiabilidade, desenho ímpar que só não utilizava retas nas rodas por motivos óbvios, conforto característico graças à suspensão alienígena e bons motores. O resultado: um sucesso comercial. Seu sucessor, o Xantia, também teve expressivas vendas ao longo do mundo, era um devorador de curvas como poucos e era bem bacana. Se eu, esse simples escriba, prefiro o Xantia pela condução, me delicia o BX pela loucura.
Novamente, os outros Citroën dos anos 1990 eram destaque de dirigibilidade e desempenho em seus segmentos. Mas se aproximavam cada vez mais do lugar-comum, apesar do interior de seus carros continuarem psicodélicos. A tendência se agravou com fusão da Citroën com a Peugeot em 1976, formando a PSA, graças às dificuldades enfrentadas pela família de André Citroën.
Falando em Peugeot, você deve estar falando nesse exato momento: "Renato, seu símio, há outras coisas na França além da Citroën!". Concordo, e por isso devo informá-los que a senhorita Emma Charlotte Duerre Watson, notoriamente Alain Prost Emma Watson, é uma parisienne que veio iluminar o terceiro planeta do sistema solar em 15 de abril de 1990 com sua doçura e candura como poucas nos dias que nos alvorecem. Ou, em outras palavras: linda, cheirosa, delícia cremosa.
Os Peugeot também são revolucionários.Tudo bem que até os anos 1970 eram notórios por fazerem carros honestos para cidadãos honestos de boina ou scarpin mas a ação de fungos dos queijos gruyère e emmenthal no cérebro dos engenheiros da marca de Lyon nos anos 1980 mudou a realidade. Ou você acha normal um hatch pequeno com motor central, que era algo como uma passagem para a morte de forma expressa, como no caso do 205 T16?
E foi no cenário dos ralis dos anos 1980 que a Peugeot se mostrou para o mundo de vez. Aqueles Peugeot 404 e 504 dos anos 60 e 70, chamados de "leões do deserto" por sua bravura e resistência nas ex-colônias francesas e suas terríveis condições de estradas, deixaram seu legado na década seguinte. Os 205 e 405 T16 no Grupo B de Rally e no Pikes Peak surpreenderam a todos e os vídeos das provas daquela época são épicos e deveriam fazer parte da formação de todo gearhead, como se fosse uma mamadeira de foie gras aveia, gasolina, leite e graxa.
E digo mais, mon petit: você talvez não saiba, mas a Peugeot fez carros honestos e venenosos para cidadãos honestos com écharpe, capacete de piloto, certificado de sociopata e sede de adrenalina: os sedãs 505, 405 e o hatch 309 em suas versões esportivas.
O 309, a propósito, não é Peugeot. Mas explicaremos já já.
Nos anos 1990 os Peugeot e Citroën eram iguais por debaixo da casca, com poucos elementos diferentes. Então, novamente destaque para desempenho e dirigibilidade a baixo custo das duplas 106/Saxo, 306/ZX, e por aí vai. E mesmo assim a Peugeot fez um dos carros mais belos dos anos 1990: o 406 Coupé.
Nota positiva também para o nosso tão conhecido 206, que além bonito, também trazia consigo versões esportivas de arrepiar os cabelos do Zidane e uma versão conversível de teto rígido - que pela primeira vez levava tal tecnologia para os carros dos simples mortais. Só que os Peugeot nunca tiveram interiores desenhados sobre a influência do uso de tóxico, de vinhos ou poções mágicas. Não tinha graça…
E novamente você aí, por detrás dessa tela, me lança perjúrios: "Renato, seu ímpio. Tomara que você pegue o metrô de Paris na hora do rush e cheire, individualmente, os sovacos sujos dos girondinos trabalhadores. Cadê a Renault nesse texto impreciso e indelicado seu?" Respondo: está aqui. Porque a Renault soube brincar um pouco com tudo (ao contrário de você, seu turrão sem senso de humor. Que Moisés volte dos Céus em um Chevette e te afogue no Mar Vermelho).
A Renault levou a sério a brincadeira de fazer pequenos hatches com motor central, de olho nos ralis dos anos 1970, antes do domínio dos carros de tração integral. Um dos frutos foi o brutal R5 Turbo com seu motor 1.4 no lugar dos bancos traseiros, carroceria alargada, tração traseira e interior...sim, mais uma vez psicodélico. Veríamos essa receita mais tarde no Clio V6 do final dos anos 1990 - embora mais classudo e refinado. Quanto a soluções heterodoxas, só se somam o entre-eixos desigual do seu antecessor, R4, o motor ambiorientado do 21, e por aí vai.
Não obstante, a Renault também fez versões nervosas de sedãs, como o 21 Turbo e o Safrane Biturbo, que além de belos eram devoradores de asfalto. Também saiam versões de altíssimo luxo e refinamento interior, como os Baccara, que estavam presentes desde o grande (e belo, a meu ver) 25 até o simples Clio, que também teve um versão esportiva na primeira geração que habita o imaginário de muita gente como eu: o Clio Williams. Isso porque nas gerações seguintes também viriam versões apimentadas e dignas de entrar para a história.
Nos anos 1990 houve mais devaneios, como o R19 16S e o Spider, que era um roadster puritano e espartano. Além disso, novos segmentos foram reinventados, como o Twingo reescrevendo a realidade dos carros urbanos tão comuns no velho continente e a Scénic habitando o imaginário das famílias gaulesas. Ah, e vale a pena citar: se temos um tetracampeão francês de nariz torto que atende pelo nome de Asterix Alain Prost, palmas para a Renault que não somente o lançou na Fórmula 1 como também inovou com um equipamento que mudou completamente o cenário da categoria no final dos anos 1970: o turbocompressor.
Notem que know-how para gloriosos motores não faltavam para os franceses, como disse acima. Se esses motores não equiparam mais seus carros foi por escolha e não por falta de capacidade, concorda? Ainda falando em Fórmula 1, um dos roncos mais bonitos da história me remete à Matra e seu V12 de ronco gutural. Essa mesma Matra fez, em conjunto com uma combalida Simca sem grande projeção após os anos 1950, o Bagheera. Esse coupé de fibra de vidro e pequenos motores tinha a simples característica de transportar, em sua pequena carroceria, três seres humanos. Em uma fileira de banco apenas. Com o motor montado atrás de todos eles. Seu sucessor, o Murena, foi apenas uma atualização da ideia.
Paralelamente, em 1977, a Matra pegou a picape de um simples modelo da Simca, o 1100, cobriu a caçamba e integrou à cabine, manteve o porte pequeno e a tração dianteira, deu a ele um visual aventureiro e elevou ligeiramente o veículo. Isso te lembra alguma coisa? Uma dica: Palio Adventure – ainda que mais com o Discovery. Pois é, os caras são bons em inventar moda mesmo! Afinal, não é qualquer povo que instala uma antena de rádio (como aquela na cidadezinha da sua avó!) no centro da cidade e faz disso um objeto de culto, não é mesmo?
E não para por aí: no começo dos anos 1980 os caras pensaram em um carro com melhor aproveitamento interno, com modularidade nos assentos, espaço interno majorado com a cabine avançando sobre o propulsor fazendo um monovolume. A Renault comprou o projeto e, em 1984, temos a Espace, tida por muitos como a primeira minivan da história. O conceito ainda foi aprimorado e encaixotado em uma embalagem menor em meados dos anos 1990, com aquilo que conhecemos como Scénic (e seu rival da Citroën que não passa de um ovo de Páscoa deitado e com rodas, o Xsara Picasso).
Por fim, temos a Chrysler Europe, então dona da Simca, comprada pela PSA em 1980. Sim, um menàge a trois entre Talbot, Simca e Matra bem complicado de se entender, com PSA e Chrysler combatendo fogo com gasolina. Mesmo assim a Chrysler continuou com vida própria até ser desativada por suas proprietárias poucos anos depois, com um modelo médio todo novo saindo do forno. A Peugeot não teve dúvidas: trocou os emblemas e lançou, com grande sucesso, seu Peugeot 309.
Ufa. Acho que chegamos ao fim, e talvez você concorde comigo que C4 Pallas, Logan, 207 brasileiro e C3 Picasso não são nem sombra da grandiosidade da engenharia automotiva francesa, apenas clareada aqui. A coisa é bem mais fascinante que isso. Seja para aparecer como uma melancia na cabeça de um anão hermafrodita, seja para engolir seus concorrentes que saiam à francesa quando confrontados por sua geniosidade, os franceses sempre foram uma coisa: Bons, da sua própria maneira.
Agora, me deixem em paz. Vou tomar um vinho e ouvir Desireless. Até a próxima, e usem os comentários abaixo para debaterem, se degolarem (invenção francesa) ou se chocarem como Schumacher e Battiston. E não esqueçam de comentar o seguinte item: se você tivesse que ter UM carro francês, seja qual for, qual seria sua escolha?