GMC Syclone e Typhoon – O jeito Redneck de se fazer um esportivo de verdade
Caminhonetes com a mais alta tecnologia capazes de bater uma Ferrari!
Estamos no final dos anos 80. Enquanto os japoneses dominam cada vez mais o mercado americano com sedans, compactos, vans e pick-ups, as diversas publicações americanas divagam que a General Motors, maior fabricante de carros do mundo, tem uma extensa opção de modelos nos EUA. Entre eles, quase como uma unanimidade, existem algumas características em comum: péssima qualidade de construção, pouca inspiração nos novos modelos, motores ineficazes e incapacidade de enfrentar seus concorrentes. Pontiac, Buick, Oldsmobile e Chevrolet se perdem em plataformas corporativas e acompanhavam diariamente suas vendas diminuir em ritmo constante.
Por sorte, em algum lugar da América alguns engenheiros da GM com gasolina nas veias se inquietaram com aquela situação. Fora o Corvette e a dupla Camaro/Firebird, a General Motors não oferecia mais nada que desse prazer ao dirigir desde o fim do Buick GNX, em 1987. E do GNX viria uma semente do mal que se encontra na seguinte história.
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O começo de tudo:
A General Motors fabricava, desde 1982, sua pick-up pequena para o mercado americano. Estamos falando da Chevrolet S10 de primeira geração, juntamente de sua irmã gêmea, a GMC S15. Não tinham nada de diferente entre si exceto pelos emblemas e pequenos acabamentos. Desta forma, aparecia em 1983 a versão fechada de ambas, denominadas Blazer e Jimmy respectivamente.
Eram carros ordinários, no sentido literal da palavra. Não de destacavam em nada, mas vendiam bem pro cidadão comum dos EUA, vulgarmente chamado de “Average Joe”. Entretanto, seus motores de 4 cilindros em linha e V6 eram antiquados, beberrões e impotentes. A despeito de seu peso, o motor mais potente era um V6 4,3L, descendente direto da linha de V6 lançada pela Chevrolet em 1978.
Este V6 era nada mais, nada menos, que um V8 Small Block sem dois cilindros. Desta forma, diversos itens eram intercambiáveis entre os V8 e os V6, nas suas mais diversas cilindradas. Esse motor é o mesmo que equipou as S10 e Blazer brasileiras a partir de 1996, mas já em uma geração mais avançada, comercialmente chamada de Vortec. No caso da S10 e Blazer de primeira geração, o máximo que esses motores chegaram a oferecer foram 165cv e 319Nm, quando com o código LB4, entre 1993 e 1995.
Entretanto, estamos falando de EUA. A S10 era, ainda assim, um carro que atendia os empreiteiros que trabalham duro, eletricistas e encanadores norte-americanos. Para eles, carros como a S10 em questão são como uma caixa de ferramentas sobre rodas e nada além disso. Também existem por lá aqueles que acreditam que uma simples pick-up reforça ainda mais sua imagem de “bruto, rústico e sistemático” que é ainda mais forte por lá do que aqui. Para esses, a existência de S10/S15 e Blazer/Jimmy de forma tão ordinária é crucial por “n” motivos, e de forma cíclica, são eles que compensam economicamente que estes veículos existam até hoje.
Entretanto, existe um terceiro tipo de americano: aqueles que compram seus veículos, inclusive pick-ups e SUVs, como veículos de desempenho puro pleno. E é com base nestes compradores que a GM desenvolveu um presente todo especial para o começo dos anos 1990.
Como era duro ser um gearhead puritano em 1989!
Antes de prosseguirmos, é interessante se fazer uma rápida análise filosófica do contexto daquela época. Na virada de 1980 para 1990, já não haviam crises relacionadas ao preço do barril de petróleo, e era a hora da volta dos grandes motores. Salvo um lampejo ou outro, os carros americanos eram desprezíveis e sem grandes atributos. Ademais, o mercado norte-americano era tomado por modelos europeus e japoneses com motores pequenos e potentes, com uso de turbo ou outros truques.
Mas isso não atendia por completo àquele órfão dos muscle cars dos anos 1960, com um belo V8 em uma embalagem não tão grande e pesada visando uma aceleração brutal nas retas das cidades e estradas. Órfãos dessa maneira existem até os dias atuais nos EUA, e estão sempre dispostos a gastar muito dinheiro no que os satisfazem. Ah, e antes que me esqueça: esses fanáticos compõem um contingente ENORME no norte do continente.
Isso tudo se torna ainda mais intrigante quando se percebe que nessa época, se você quisesse um V8 nos EUA, você deveria partir para o quarteto Corvette/Camaro/Firebird/Mustang. Ou então partia para grandes sedans, como Ford Crown Victoria e Chevrolet Caprice. Ou então...comprava uma pick-up ou SUV! Que possivelmente tinha melhor relação custo/benefício que todos os outros citados.
Ainda assim, uma pick-up ou um SUV não são muscle cars. O comportamento deles é pior do que um Mustang ou Charger da vida, e esses carros por si somente já são uma lástima naquele circuito travado ou naquela estrada de serra que ilegalmente (e legalmente pela adrenalina que rola) você faz de Nürburgring particular.
Assim, em um primeiro momento, temos a seguinte verdade: Pick-ups e SUVs esportivos são totalmente inúteis como carros para desempenho esportivo. E ainda pode ser pior, porque uma versão esportiva de uma picape não serve para diversão e também não se faz digna ao trabalho, graças a modificações nas suspensões que reduzem a capacidade de carga e as tornam mais desconfortáveis. Basicamente, o pior de dois mundos.
Complexo, não é? Entretanto, aquele rebanho de engenheiros revoltados citados no começo do texto entra aqui revogando essa teórica verdade. E, para isso, eles se inspiraram na semente do mal.
A semente do mal, a rebeldia e os ensinamentos de casa
Se resolvêssemos a péssima dirigibilidade de uma pick-up e colocássemos - mesmo que na base da marreta - um V8 no cofre do motor, teríamos algo próximo de um Muscle Car, não é mesmo? Foi o que esses engenheiros pensaram, e elegeram a S10 para ser a base desse ato de rebeldia. Por que ela? Simples: menor, menos peso. Mais baixa, menos problemas com as curvas. Até aí tudo bem pensado, não é? Mas aí surgiram os problemas que foram resolvidos com ensinamentos que estavam nas prateleiras da própria General Motors.
1º problema e ensinamento – Se o motor não cabe, faça caber. Ou substitua por algo a altura.
Sendo a S10 uma pick-up pequena, e sendo a GM a maior fabricantes de V8 do mundo, a conta era simples de ser concluída, ainda mais pelo fato do Small Block Chevrolet ser um motor relativamente pequeno. Mas a questão é que não coube de forma natural, sem que se tivesse que empreender mudanças extensas na estrutura do veículo.
Aí entrou a semente do mal. Em 1987, como comemoração do fim de um ciclo feliz, a divisão Buick fez o único muscle car do mercado americano dos anos 80 capaz de ser melhor do que Ferrari e Porsche. Entretanto, esse ciclo de sucessos se baseava, desde 1978, em um motor V6 turbinado. Era o V6 Fireball, também oriundo de um V8 “cortado” e com ordem de ignição fora do usual, que foi vendido e recomprado pela GM, em uma história mais conturbada que a relação da Bárbara Evans com sua mãe.
Mas, brigas de família a parte, a Buick tinha chegado no estágio final de evolução com o GNX, nome desse sedã de duas portas unicamente vendido na cor preta e com indubitável associação com o Darth Vader. Seu motor LC2 de 3,8 litros produzia alegados 280cv e 490Nm de torque, transmitidos por uma transmissão automática de 4 velocidades. Entretanto, é sabido que a Buick declarou a potência e o torque em valores ABAIXO da realidade.
O motivo? Não dar uma surra no Corvette C4 e seu Small Block de 5,7 litros de apenas 230cv, que deveria ser o veículo mais potente da General Motors naquele momento. Ainda assim, o GNX era 1 segundo mais rápido que o Vette, sendo mais rápido também que a BMW M635i e o Porsche 928S.
Se um V6 turbinado pode substituir à altura um V8, por que não repetir a dose para equipar a S10? Estava plantada a semente do mal. Tentaram colocar o próprio V6 Buick Turbo na pick-up, mas também não obtiveram êxito. Mas sem problemas, vamos turbinar o LB4!
2º problema e ensinamento – A solução dos seus problemas pode vir de onde menos se espera. Até de origens menos nobres.
Falaremos mais do motor da S10 rebelde. Mas já adianto que ele ficou potente, bem potente. Entretanto, como colocar essa potência no chão? Se a caixa automática THM 700-R4, original e extremamente comum, dava conta do recado, o resto do sistema de transmissão não digeria bem toda aquela força. A solução? Pegue a tração integral Borg-Warner do Chevrolet Astro que a vó usava pra levar os netos para passear. Com 65% da potência despejada nas rodas traseiras, ela deveria dar certo. E deu, como veremos.
Ok, e para refrigerar todos aqueles fluidos passando por aquele motor potente? Se não fosse corretamente refrigerado, algo poderia dar errado, não é mesmo? Pois não: pegue os radiadores de água e óleo da S15 em versão especial para reboque, atividade essa muito comum nos EUA. Mas nem por isso dispense o intercooler água/ar da Garrett, para que tudo saia nos conformes.
Ah, sim. Você tem um carro turbinado e precisa de um painel de instrumentos que lhe permita gerir todos aqueles dados, ainda mais em uso intenso, não é mesmo? Sem problemas: vá no almoxarifado e pegue os painéis que sobraram do Pontiac Sunbird Turbo que estava saindo de linha em 1990 (2,0 turbo com 165cv, um motor fabricado no Brasil e nunca ofertado aqui. Somos sortudos, né?). Os mostradores encaixaram como uma luva no painel original, e ainda conferiram aquele ar de exclusividade.
3º problema e ensinamento - Quando menos é mais, muito mais.
Beleza, e como vamos paramentar esse carro para o público? Simples: aproveite a menor altura de rodagem da suspensão esportiva especialmente desenvolvida. Novas rodas de alumínio de 16x8 polegadas ajudam a compor o visual e abrigavam pneus Firestone Firehawk SVX na medida 245/50 R16, de alto desempenho. Que por sua vez demandam novos para-lamas, ligeiramente alargados.
O novo para-choque, necessário para abrigar o intercooler, também está lá, assim como novas saias laterais. Coloque novos bancos, também do Sunbird Turbo. E nada mais, deixe que o carro fale por si.
Quando um mais um é, pelo menos, maior que três:
Dos ensinamentos acima surgiu, em 1991, uma pick-up como nunca antes vista no mundo, paralelamente com sua versão fechada. Após discussões, decidiu-se lança-los sob a marca GMC. Seus nomes? Syclone para a pick-up, Typhoon para o SUV. Mais acertado, impossível.
De seu desenvolvimento de chassis, temos suspensões especiais (e com função auto-nivelante com bolsa de ar para a Typhoon), freios com ABS nas quatro rodas pela primeira vez em um utilitário (com discos de 9,5 polegadas na dianteira e tambores na traseira), além do sistema moderno e confiável de tração integral.
Do desenvolvimento de motor, o V6 4,3 ganhou um turbocompressor Mitsubishi TD06-17C operando a 0,97 bar de pressão máxima, além de novos pistões hipereutéticos que baixaram a taxa de compressão para 8,35:1 ao contrário da taxa de 9,2:1 do V6 comum. Também faziam parte do pacote de preparação juntas do cabeçote reforçadas e bronzinas dos mancais em ferro fundido nodular. Com injeção multiponto Rochester melhorada e novo sistema de escapamento, a admissão também ganhava um novo corpo de borboleta, com 48 mm e oriunda do V8 L98 5,7l do Corvette.
O resultado? 284cv a 4.400rpm, e 475Nm de torque, sendo entregue em sua totalidade entre as 2.800 e 3.600 rpm. Com limite de giro em 4.800rpm, era um motor de giro baixo mas de potência assombrosa para a época. Lembre-se que em 1991, uma Ferrari 348ts tinha apenas 300cv! Com peso em ordem de marcha na casa dos 1.597kg para a Syclone e 1811kg para a Typhoon, obtemos uma relação peso/potência de 6 e 6,4kg/cv. Números expressivos até para os dias atuais. Que podem ser ainda melhores, já que diversos testes com veículos zero-quilômetro demonstravam potência ligeiramente superior aos 300cv. O motivo da menor potência declarada? Evitar outra surra numérica no Corvette...
Se somarmos esse motor com o chassi, teríamos um carro espetacular, correto? A questão é que a coisa foi muito superior a isso.
Em um teste realizado pela Revista Car and Driver em Setembro de 1991, a Syclone fez a prova de 0-96 km/h em 4,3s. Isso já seria demais por si só, mas no mesmo teste ele acelerou mais rápido...que a própria Ferrari 348ts, que gastou mais do que 5 segundos! No quarto de milha, outra vitória: 14,1s pro GMC, 14,5s pro esportivo italiano.
Em março de 1992, foi a vez do Typhoon ir para a pista. Resultado? 5,3 segundos para ir a 96 km/h partindo da imobilidade, desempenho pior do que sua irmã com caçamba devido ao maior peso. Ainda assim, superior a muito esportivo de respeito. E o melhor: pela metade do preço de um Corvette ZR-1.
As duas também eram boas de curva graças à tração integral, permanecendo agarradas no chão a despeito da altura bem superior ao dos esportivos típicos, com a Syclone atingindo respeitáveis 0,8g de aceleração lateral no skidpad. Não obstante, a Syclone foi bastante elogiada, por “parecer ser dispensada pelo Papa das leis da física vigentes”. A velocidade final de ambas era pouco além dos 200 km/h, devido à aerodinâmica de caixote de ambas.
Tudo que é bom dura pouco:
A dupla Syclone/Typhoon foi apenas um rápido devaneio da GM. As 2.995 Syclones foram feitas em 1991, todas pintadas de preto, exceto por uma raríssima série especial da Marlboro pintada de vermelho e branca. Deveriam continuar em 1992, mas não tiveram prosseguimento.
Já as Typhoon foram feitas entre 1992 e 1993, quando a S15 mudou seu nome para Sonoma, totalizando 4.697 unidades, nas cores preta, branca, vermelha, azul e verde. A única diferença entre ela e a Syclone eram o banco traseiro, suspensão auto-nivelante, interior em couro e sistema de som especial. Ambas foram produzidas de forma terceirizada na Production Automotive Service em Troy, Michigan.
Foram os precursores de um sem-número de picapes e utilitários de vocação esportiva, que alcançaram patamares de desempenho, potência e refinamento muito superiores aos GMC. Mas nenhum deles têm o carisma de salvar moralmente uma nação no campo automotivo, nem podem se orgulhar da origem rebelde que confrontava carros mais caros e garbosos.
Precisamos de mais Syclones e Typhoons nos dias de hoje.