Adeus – Mille se despede e Fiat fica em dívida com o modelo

Veterano se aposenta após três décadas de bons serviços prestados
 
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Com uma trajetória de trinta anos, desde seu lançamento em 1983, o velho e conhecido Uno – que hoje atende apenas pelo nome de Mille – se despede do mercado brasileiro. Com mais de 3,7 milhões de unidades produzidas, o compacto foi lançado em janeiro de 1983 no Cabo Canaveral (Flórida), nos Estados Unidos, e era o primeiro modelo mundial da Fabbrica Italiana Automobili Torino (Fiat). Um ano depois, o Brasil receberia o Uno, que inovou e conquistou as ruas do país. Em 2013, devido às novas exigências que pregam a obrigatoriedade de ABS e airbag em todos os veículos produzidos a partir de 1º de janeiro de 2014, ele se despede e deixa várias heranças para todos os segmentos.

O Fiat 127, lançado em 1971 na Europa – que deu origem ao nosso 147 – já dava sinais de cansaço. O projeto de seu sucessor deu os primeiros passos no final da década de 1970 e o resultado final era surpreendente para a época: linhas retas e harmônicas favoreciam a aerodinâmica. Colaboravam para isso os vidros rentes à carroceria, os para-choques envolventes e até as maçanetas embutidas das versões de duas portas. Chamava atenção a ampla área envidraçada, ponto positivo para a visibilidade; o limpador de para-brisa com único braço e o bom espaço interno, uma das marcas do compacto italiano.

Toque brasileiro ao Uno

Fiat Uno SX (1)

Apesar da boa trajetória do Uno pelo velho continente, seria muita história pra contar. É melhor mantermos o foco e narrarmos os anos dele apenas no Brasil. Era agosto de 1984 e o 147, que já tinha oito anos, perdia fôlego. A Fiat respondia com a fabricação do novo modelo da marca em sua fábrica, localizada em Betim (MG). O Uno dava sinal de luz e ultrapassava seu antecessor.

Mas não antes de receber alguns toques brasileiros, que o deram ainda mais personalidade frente ao projeto original. A primeira mudança estética evidente ficava por conta do capô, que avançava sob os para-lamas: a alteração permitiria alocar o estepe no compartimento do motor, como no predecessor. Isto fazia com que o Uno não perdesse espaço no porta-malas e evitasse a retirada de toda a bagagem se o pneu furasse em uma viagem, por exemplo.

Este não foi o único motivo para que o pneu reserva fosse parar no compartimento do motor. A própria Fiat havia constatado que os amortecedores originais não aguentariam mais do que cinco mil quilômetros sob uso intenso em nosso asfalto. Por isso a adoção da suspensão traseira independente MCPherson, com feixe de molas transversal, herdada do 147. O uso deste sistema fez com que não houvesse espaço para a caixa de roda reserva no porta-malas, fazendo com que ele fosse parar no cofre do motor. A “nova velha” MCPherson trazia maior robustez, mas afetava diretamente no conforto. Uma característica desta suspensão era a cambagem negativa das rodas, à medida em que o feixe de molas cedia, por acréscimo de carga ou pelo tempo de uso.

Um patriarca e o primeiro toque esportivo

Em outubro do mesmo ano de seu lançamento, chegava a versão Sport Experimental – SX (acima). Debaixo do capô, um motor 1,3 litros com carburador de corpo duplo que fazia o motor chegar a potências de 71,4 cavalos (gasolina) e 70 cavalos (álcool) com torque de 10,6 kgfm. O propulsor levava o modelo aos 155 km/h de velocidade máxima.
Fiat Premio CS

A chegada do três volumes Prêmio trazia porta-malas com capacidade para 530 litros e aposentava o sedã Oggi, de apenas dois anos de idade, e vendas pouco expressivas. O derivado do Uno vinha com motor argentino Sevel de 1,5 litros – fruto da associação entre Fiat e Peugeot. Apesar da potência mediana (apenas 71,4 cavalos no álcool), o principal ganho era no torque: 12,3 kgfm. Com isto, o motor que equipava a versão SX do Uno, passou a equipar as versões de entrada de Uno e Prêmio, intituladas de “S”. Além disto, o sedã inovaria o mercado ao oferecer o primeiro computador de bordo do país como opcional, disponível também no hatch no lugar do conta-giros.
Fiat Elba CSL (2)

Mas ainda faltava estender a família. Para substituir a estabanada Panorama – e seu teto em dois níveis – ainda surgiria outro membro: a Elba (foto acima), lançada em março de 1986. Com as mesmas opções de motores do sedã e amplo porta-malas, a perua prometia carregar até 610 litros de carga até a parte mais alta do banco traseiro. Meses depois, o ano de 1986 terminaria e o 147 fora aposentado. O Uno cumpria sua missão e, de quebra, deu origem a outros modelos que renovaram a linha da marca ainda na década de 1980.

No ano seguinte, o hatch ítalo-mineiro ganhava roupagem esportiva autêntica e motor um pouco mais nervoso. Tampa traseira fosca, em qualquer que fosse a cor da carroceria; faixas laterais que estampavam a nomenclatura e versão “Uno 1.5R” e calotas que lembravam os antigos telefones de discos. No interior, eram mantidos o painel e o volante da versão esportiva antecessora, a SX. Os cintos de segurança e uma faixa central dos bancos eram em vermelho.
Fiat Uno 1.5R

Debaixo do capô, o motor era o mesmo 1.5 que equipava Prêmio e Elba, mas um pouco apimentado. Um comando de válvulas mais arisco, taxa de compressão mais alta e carburador de corpo duplo faziam o carro subir dos 71,4 para bons 86 cavalos e 12,9 kgfm de torque. Números que faziam o Uno ter desempenho superior ao Escort XR3 da época: o Fiat alcançava os 100 km/h em 11,6 segundos contra 12,3 do Ford. Vale lembrar que este propulsor era alimentado por álcool. Para parar o esportivo da Fiat freios dianteiros a disco ventilado. O modelo era calçado com pneus Pirelli P6 165-70 R13 que colaboravam para uma condução esportiva.Fiat Uno Pick-up (1)
Mas, para a família ficar completa, faltava apenas uma integrante: a Fiorino. A 147 pick-up deixava as linhas de produção para dar lugar à caminhonete compacta derivada do Uno, que também ganharia versão furgão. Com acabamento simples, a pick-up levava pouco menos de mil litros quando carregada até a borda da carroceria, com limite máximo recomendado de 620 kg. Já a versão fechada, carregava até 540 kg e tinha capacidade para mais de 2,5 mil litros.

De Uno a Mille

Fiat Uno Mille (2)

No começo da década de 1990, o motor Sevel ganhava em cilindrada e passava de 1,5 litros para 1,6 litros: potência de 84 cavalos com gasolina, 88 cv a álcool e torque de 13,7 kgfm. A versão esportiva passava a se chamar 1.6R e a Elba ganhava opção de cinco portas no Brasil – antes a versão de cinco portas da perua, produzida desde 1986 em Minas Gerais, não era considerada uma boa cartada para o mercado interno e seguia para exportação.

No mesmo ano, o presidente Collor e a ministra de Economia Zélia Cardoso de Mello efetuavam uma redução tributária para motores de 800 a mil cilindradas. O Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) sobre veículos com motores dentro destes padrões, recolhiam apenas 20% de alíquota, metade do praticado até então.

Surgia aí o Uno Mille – tradução livre de “Um Mil”, em relação direta à cilindrada do motor – o primeiro popular brasileiro. O motor era um Fiasa, de 994,4 cm³, modestos 48 cavalos e torque de 7,4 kgfm. Apesar dos números comedidos, o Fiat tinha boas retomadas, surpreendendo na facilidade para ultrapassagens e na suavidade do propulsor. Chegava aos 100 km/h, partindo da imobilidade, em 21 segundos e tinha velocidade máxima de 135 km/h. A versão era espartana, algo notável pela falta do marcador da temperatura e dos difusores de ar laterais. Câmbio de cinco marchas, servo-freio, limpador elétrico do para-brisa e até retrovisor externo direito eram opcionais.
Fiat Uno 1.6R

Para 1991, a primeira reestilização: a dianteira recebia retoques e ficava mais harmoniosa. Faróis de perfil mais baixo e grade menor, acompanhados de um filete que percorria toda a dianteira dividindo o conjunto ótico e grade do radiador do para-choque dianteiro. O Uno Mille continuava do mesmo jeito: com o rosto de quem foi lançado, já que seu foco era ser um veículo de custo baixo. Pouco tempo depois, o Mille ganhou ignição digital, que iria ocasionar em aumento da taxa de compressão, e carburador de corpo duplo.

Com 56 cavalos e 8,2 kgfm de torque, o Mille era o veículo 1.0 com melhor desempenho que se tinha notícia naquela época. Deixava para trás o Gol 1000 e o Chevette Júnior em potência, torque, aceleração e velocidade máxima. O Fiat ainda oferecia opção de carroceria de quatro portas e ar-condicionado, com corte de compressor nas acelerações a fundo, com objetivo de entregar toda a potência de volta ao motor, quando acionado.
Fiat Uno Mille ELX

Em 1993, a chegada da injeção eletrônica ao motor do 1.6R. A injeção multiponto agregava o MPI ao sobrenome do esportivo, que nas laterais passava a estampar o logotipo “1.6R MPI”. Mas 1994 seria um ano diferente para o hatch brasileiro. A chegada do Corsa Wind fez com que a Fiat se mexesse. Um mês depois da chegada do Chevrolet de formas arredondadas, a resposta foi o Mille ELX: uma versão mais luxuosa do popular da Fiat. A reação era convincente e vinha com a dianteira de perfil baixo e painel já utilizado nos topos de linha.

Tempero apimentado

Fiat Uno Turbo (3)
Ainda em 1994 o Uno escreveria, de vez, seu nome na história automotiva brasileira. Sem rodeios, a Fiat fazia do Uno o primeiro turbinado nacional. Os europeus tiveram uma versão turboalimentada em 1985 de motor 1,3 litros e 105 cavalos de potência. Segundo o Best Cars, a versão foi lançada no GP do Brasil de Fórmula 1, em 1985.

O propulsor era um 1,4 litros, já usado no país sede da fabricante, e pertencia à mesma família do Sevel 1,6 litros, com radiador de óleo e resfriador de ar. A turbina era uma Garrett T2, que funcionava à pressão máxima de 0,8 bar. O suficiente para atingir potência de 118 cavalos e 17,5 kgfm de torque. O pequeno chegava aos 100 km/h em 9,2 segundos e velocidade máxima de 195 km/h. Com menos de uma tonelada, o primeiro carro turbo nacional tinha ótima relação peso-potência: 8,26 kg/cv, segundo a revista AutoEsporte.
Fiat Uno Turbo (1)

No exterior, o Uno Turbo se destacava pelos para-choques com desenho exclusivo e molduras de para-lama que acompanhavam a saia lateral, dando unicidade ao conjunto. Para segurar o foguetinho no chão, rodas de 14 polegadas calçadas em pneus 185-60, montadas em cubos do Tempra – que também cedeu o sistema de freios ao hatch. No interior, bancos envolventes, volante de três raios e painel completo: velocímetro, conta-giros, manômetros de pressão e temperatura do óleo e pressão da turbina.

Com a adoção de um novo bloco, o pneu reserva voltava ao porta-malas, reduzindo significativamente sua capacidade. A falta do ar-condicionado como opcional nos primeiros Uno Turbo, foi corrigida no ano seguinte. Os primeiros proprietários que adquiriram o modelo ganharam um curso de pilotagem. O modelo foi fabricado até 1996 e ainda hoje arrebata fãs.

Força extra para remar contra a maré

Fiat Uno Mille EP (1)

Ainda no meio de 1995, o Mille ganhava injeção eletrônica que lhe garantia melhor desempenho. A versão ELX ganha outra denominação: EP, com potência de 58 cavalos e torque de 8,2 kgfm. Novas rodas de alumínio e alarme com telecomando foram opcionais que marcaram o modelo. Em 1996 – mesmo ano em que o Uno era descontinuado no velho continente – chegava seu sucessor, o Palio, desenvolvido para mercados emergentes.

Não demorou muito até que as versões topo de linha do Uno fossem descontinuadas. Prêmio e Elba se foram e deram lugar a Siena e Palio Weekend, respectivamente. A Fiorino demorou um pouco mais a dar seu lugar a uma pick-up derivada do Palio: o fato ocorreu apenas em 1998. Mas o Mille ainda perduraria. A linha 97 foi apresentada apenas na versão SX. A revista Quatro Rodas testou esta versão em novembro de 1996 e deu a seguinte manchete: O último dos Uno.
último dos Uno

Ledo engano. Mesmo com a evolução da concorrência, o Mille perdurou e a linha 98 passou a se chamar EX, após perder uma luz de ré. Em 2000, a versão EX virou Smart e, do lado de fora, ganhou nova grade. No interior, novo volante de quatro raios e quadro de instrumentos com fundo claro. Em 2001, adoção do motor Fire, que já utilizado no Palio: apesar dos 55 cavalos – dois a menos que o atual Fiasa – mais disposição em baixas rotações e maior autonomia: torque de 8,5 kgfm do atual bloco, contra 8,1 kgfm do antigo, e médias rodoviárias de até 20 km/l, segundo a fabricante.

Quanto às alterações estéticas, o Mille Fire recebia grade com o novo símbolo circular azul da marca e novos logotipos. No interior, novo volante, herdado do Palio Fire.

Da cara nova ao adeus

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Em 2004 o Mille ganhava retoques controversos na carroceria. Do lado de fora, há quem diga que alguns detalhes remetiam ao multiuso Doblò. No interior, o quadro de instrumentos era dividido com o Palio, assim como o volante. O acabamento era espartano e denunciava, cada vez mais, o Mille apenas como um carro sem mimos. Simples, ágil e econômico, o popular da Fiat ainda atendia o consumidor que precisava se deslocar com o custo mínimo. Seja na hora de abastecer ou na hora da revisão.

O fôlego novo ao Mille, em 2005, veio com adoção do motor bicombustível. Na gasolina, eram 65 cavalos e no etanol 66, contra 55 do antigo propulsor, alimentado apenas por gasolina. O torque de 8,5 kgfm (monofuel) subiu para 9,1(g) 9,2(e) kgfm na versão flex. No ano seguinte, o Mille ganhou como opcional o pacote Way, que trazia um visual aventureiro leve. Pneus 175-70 (contra os 145-80 da versão Fire), altura de rodagem maior e molduras plásticas nos para-lamas.Kit-Way7Alta
Mais tarde, já em 2008, o pacote virou versão e o Mille “civil” passou a se chamar Economy. Entre as mudanças, quadro de instrumentos com novo grafismo acrescido de um econômetro, que indica através de um ponteiro como dirigir de maneira econômica. Pneus de menor resistência ao rolamento, alterações na suspensão, redução de atrito entre componentes do motor e quinta marcha mais longa completavam o “kit pão-duro”.

Com um projeto novo, o nome Uno é retomado no Brasil. Com um desenho quadrado de quinas arredondadas, não demorou muito até que sua presença fosse notada nas ruas. Mas e o Mille? Ele se despede em 2013 do mercado. Com a versão Grazie Mille, numerada em duas mil unidades, que é bem equipada e custa R$ 31,2 mil. Mas, na opinião deste humilde editor, ficou bem longe de homenagear os anos de ouro do pequeno Uno. Talvez uma nova versão turbinada, que relembrasse os tempos de ouro, pagasse a dívida que a Fiat adquiriu com o carro que tanto lhe deu lucro, em todos estes anos.
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A legislação que entra em vigor a partir de 1º de janeiro exige que todos os veículos tenham freios ABS e airbags. Como você já viu aqui no Novidades Automotivas, não seria nenhum bicho de sete cabeças adaptar os itens e manter o Mille em linha, necessitando apenas um airbag para o passageiro. Mas já chegou a sua hora e nós entendemos isto. E nos próximos dias acabará a vida de um campeão. Grazie, Mille!
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Nota do editor

Douglas e Uno

Não poderia terminar este texto sem um agradecimento pessoal. Desde pequeno, sempre fui apaixonado por carros e a culpa disso é de um certo Mille ELX ano e modelo 1995. Reservei este texto com, ao menos, um mês de antecedência. Após ter dado seu lugar a um Tempra série ouro ano e modelo 1993, passei a infância, a adolescência e, hoje, na fase adulta, continuo planejando o dia que um Uno voltará a habitar a minha garagem.

Nestes mais de 15 mil caracteres não usei apenas palavras. Usei meu coração para contar a trajetória de um verdadeiro sucesso de vendas. Obrigado por tudo. Mas chegou sua hora de dar adeus. Com essas palavras, encerro minha homenagem: Grazie, Mille!

Douglas Lemos

Fotos | Fiat Press, Acervo Digital da Quatro Rodas e Acervo Pessoal

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